21.4.08

O bandido francês

Roraima está nos jornais. Terra In'dígena Raposa Serra do Sol. Até aí tudo bem. Mas quando vi Surumu nas manchetes me surpreendi. É um entroncamento, coisinha muito pequena, que chamam até de cidade, onde ouvi uma história surpreendente. Incrível. Requento ela abaixo, data de setembro de 2004.

Fui em direção ao velho. O tempo era pouco e me impunha precisão. Por elegância e respeito me apresentei, ganhei aperto de mão e convite para sentar à sombra. Mal acomodado já perguntei: É verdade? Disse ele que não podia dar certeza. Mas adornou a história, contou que acolhera o francês estropiado que chegava de acidente de garimpo. Foi? Mancava da perna, carregava dois crivos de bala na cabeça. Seu bafo era insuportável, sempre. Merda. O motorista me olha, já me apressa. Entregou as vacinas no posto de saúde e quer sair. Levanto. Agradeço e tento outra vez. Dá pra precisar se era ele? Não, diz o velho. Tem gente que diz que era, eu não asseguro. Mas tá enterrado aqui, no Surumu.

Surumu, cruzada de caminho pra comunidade Taxi (diz-se Tachi). A terra é de Macunaíma, zona de índios Macuxis, Taurepangs e Wapixanas. Lá chegado, banhado de rio e almoçado, segui pra casa de Seu Alquino, o pajé. Ele ofereceu pinha. Dividi com o cachorro, bicho magro demais pra se armar de pé que, esquecido de cerimônia, aceitou a fruta. O pajé nada falou do francês. Contou de seu iniciatório na pajelança com o tio que abriu buraco na terra e ordenou pra ele lá entrar. Ficou seis meses. Comia biju, bebia água. Saiu pau, diz que mais magro que o cachorro. Estudou o uso das ervas e o conhecimento dos espíritos. Graduado, não encontrou mais encantos na mata pra desfazer. Já era tempo de paz, desde quando um pajé velho mergulhou no rio pra brigar contra o mistério que matava os nadadores. A peleja foi brava, quando quase afogado o indío puxou pra fora d’água o bicho encantado, peludo, igual a uma criança que escapou e sumiu.

O dia morria, troquei uma saudação e parti.

Na beira da linha, onde se faz a ronda da fronteira. Pra lá é Venezuela, pra cá Pacaraima. Aguardando o filho do velho, que é candidato a prefeito. Queremos armar carona, garantir viagem pra capital. O café é quente, o melhor de Roraima. No aguardo. Azeitona, o motorista, xinga. Tudo. É só puta que o pariu, filha de uma puta. Sujeito fiel. Mais café, ôba. Já ouvi dizer que bebida quente nesses copos de plástico causa câncer. Penso nisso. Chegam uns carros. Correligionários. O partido é o PT. Sai um jantar, quanta gentileza, como feliz. A farinha tá excelente. Um copo de café. O filho do prefeito, ôba.

O candidato é filho do velho e morou com o francês. Disse que o corpo era todo tatuado de borboletas. Se dizia chamar Seu René. Mergulhou no mar com mais 15, fugidos da Ilha do Diabo. Boiaram numa balsa de coco, uns ficaram pelo caminho, de morte morrida ou morte matada. Restaram quatro. Seu René insistia que era Seu René. Negava ser Papillon, o bandido francês.

Apegado ao garimpo, viajava atrás de pedra preciosa. Encontrou um dia uma mosca varejeira que lhe fez ninho no nariz. Voltou do mato com a cara coberta de vermes e cheio de gritos. Ganhou limpeza com creolina pelas freiras do convento. E ficou pior do que já andava.

Lia e escrevia. Ganhava revistas O Cruzeiro e Manchete dos aviadores da FAB. Foi compondo biblioteca. Debaixo do braço o livro de Henri Charriérre. O francês escrevia em cadernos, revelava ali sua história. Ganhou reta pra morte com o câncer que apareceu. Ninguém conhecia a doença, sabia-se nada de como se pegava ou curava.

Deu fim. Morreu. O câncer levou. O povo preocupado, desentendido da doença, tinha a certeza do contágio. Jeito que existia era esterilizar tudo. Chegaram à biblioteca e atearam fogo. Queimaram a O Cruzeiro, a Manchete, o livro de Charriérre e as anotações do francês que revelavam ele ser (ou não) Papillon.

Morto no Surumu.

2 comentários:

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